“O astral dos moradores de rua está muito bom, acho que é porque o frio deu uma trégua hoje.” A sentença é do prefeito Gilberto Kassab, dita em visita a um albergue no Brás, na noite de ontem, na região central da cidade de São Paulo.
Ficar em silêncio quando não há nada de útil para se dizer é um dom que poucos políticos têm. O nosso prefeito, por exemplo, já provou em mais de uma ocasião que não está entre os agraciados (lembram-se quando expulsou aos berros de “vagabundo” um cidadão que protestava em um posto de saúde no bairro de Pirituba?).
A assessoria justificou que ele estava se referindo ao astral super tchap-tchura que sentiu no albergue e não na rua. Ah, tá! Aí, tudo bem! Afinal de contas, um albergue – como todos sabemos – é um espécie de clube de inverno onde todos vão felizes se hospedar para desfrutar das nababescas instalações de lazer e recreação (dizem que tem até ofurô!), e não para fugir do frio e do achincalhamento por parte da super bem treinada Guarda Civil Metropolitana ou como consequência da inexistência de uma política séria para habitação.
Faça um teste: deixe o prefeito uma noite em um albergue da capital e pergunte para ele, na manhã seguinte, sobre o “astral” que sentiu ao sonhar com um quarto e uma cama só seus,
A recuperação da área central de São Paulo não se restringe a uma valorização estética das ruas, edifícios e bens culturais, como vem sendo a prioridade do poder público até agora. Inclui também o repovoamento do local, trazendo vida à região, com incentivos para o estabelecimento das classes média e baixa. O que tem sido feito é o contrário: expulsa-se o povão, implanta-se uma arquitetura da exclusão (com formas de afastar essa gente encardida de perto) e ergue-se monumentos à música e às artes. Allegro! Para compensar, um albuergue aqui e acolá a fim de que os rejeitados sejam recolhidos e depositados em algum lugar antes que termine a sessão na Sala São Paulo e as pessoas de bem sejam obrigadas a deglutir cenas incômodas. Presto!
Sabe o motivo do alto astral dos moradores, prefeito? É que pipocam pela cidade prédios fechados com tijolos mostrando que a urbe considera mais importante alimentar a especulação imobiliária do que permitir que os sem-teto que rondam por perto possam se proteger do tempo em uma lar. O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se esses imóveis trancados pudessem ser desapropriados e destinados gratuitamente para quem precisa. Há prédios que devem milhões de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e poderiam ser alvo do Decreto de Interesse Social, uma vez que permanecem vagos por anos. Mas aí mexe com gente economicamente poderosa, né?
Outro motivo para celebrar com o prefeito? Vamos lá: na cidade de São Paulo, o pessoal que não se enquadra nos albergues pode ser vitima do preconceito e da intolerância. Chacinas envolvendo a população de rua ficaram conhecidas por aqui. Em maio do ano passado, cinco foram assassinados no bairro do Jaçanã, periferia de São Paulo. Dormiam embaixo de um viaduto. Em agosto de 2004, sete outros foram mortos, na maior chacina contra o povo de rua na cidade. As investigações apontaram para policiais militares.
Em uma sociedade que impõe à população de rua a pecha de vagabundos, ladrões, traficantes, de ameaças à saúde pública, não é de se estranhar que a pressão pela resolução de crimes como esses ou mesmo do seu problema de moraria não esteja entre as nossas principais pautas. Tentar entender a realidade do outro? Nem pensar! Quem é diferente que se mude. Ou vá para um albuergue.
Seja pela falta de políticas públicas que lhes garantam dignidade, seja pela bala e, agora, pela ironia no Twitter, parece que estamos tentando tornar sua existência insuportável. Resolvemos o nosso problema acabando com o outro. A faxina social vai ocorrendo, dessa forma, a conta-gotas, pelas mãos do Estado ou de agentes privados.. Talvez para não melindrar o cidadãos de bem, que não gostam de mendigos por aí, têm horror a cenas de violência e querem a vida em alto astral.
Fonte: Portal Porto Gente